quarta-feira, novembro 30, 2005


Ao frémito profundo dos que palpitam nas ruas da cidade corresponde a luminosidade das minhas escadas. Digo que são minhas porque de cada vez que as subo ou desço, afinal, elas são o meu corpo e a minha história enquanto avançam para dentro das minhas recordações ou saem para um qualquer esquecimento feito aragem. Elas são o meu corpo. elas são o meu corpo. as escadas. eu digo que as escadas imersas numa luz que se multiplica e se levanta nutrida pelo cimento cinzento que se esbate na cidade e nas casas, sou eu. na cidade. o meu corpo é o mundo nestas escadas, estas escadas que me pensam quando saio de casa ou vou para o trabalho e me esquecem adormecidas pela luz. que se esgota ali, inventando-me num tenebroso tumulto de todos os dias me verem ali, aqui, táctil e tão desarmado nas costuras sangrentas do tempo. tão completamente sem nome quando lhes estendo os dedos e a mão num relâmpago lento e rasgado do ar. pensam-me as escadas e eu. eu desço-me desde o chão. e palpito, pulso a pulso nas ruas desta cidade que é tão longe de ti.

domingo, novembro 27, 2005



Tu estás aqui


- Ruy Belo dito por Luís Miguel Cintra - in 'Poemas de Ruy Belo' - colecção Poesia Dita.


Quando lá fora o céu chuvoso canta uma espécie de enorme comoção na ternura embebida da chuva, as aves fogem para longe e na cidade inteira repousa uma sucessão de sons pequenos como pálpebras palpitantes que se fecham incessantemente. Eu sigo daqui o meu inverno e ele nasce das minhas costuras num pavor árduo e numa nua impetuosidade animal. Onde a noite se aprofunda para dentro do frio, o sol sou eu mesmo e assim eu sou o homem inábil e fechado numa massa íntima de nuvens e estrelas que se suicidam no tempo. Pelas minhas mãos fogem as mesmas aves que abandonam as cidades sem luz e que confundi com o tempo enquanto eu fico aqui; e pelo meu peito passam os dias, o clima atroz, aquela tua praia atra numa fereza de um clamor que como um manto ainda me atravessa de um braço ao outro por entre imagens que se desenrolam na ternura sumptuosa dos buracos luminosos da minha roupa ainda quente.

sábado, novembro 26, 2005

sexta-feira, novembro 25, 2005

terça-feira, novembro 22, 2005


Descalço e só, estou no meu quarto e sei que lá fora choves de mansinho. Próximo do soalho tranquilo os meus olhos espalham-se húmidos e animais por uma escuridão bordada a notas de um piano em crepúsculo. É verdade; ainda há pouco eu dizia quase sem querer que hoje mesmo te tinha escrito uma carta. Não era de certeza muito longa, acho. Lá fora chove. Enquanto te escrevia choveu a tarde inteira, sabias? Agora, à noite, estou aqui sentado e os meus olhos floresta deambulam talvez no pensamento do que te escrevi. Era uma carta assim suavemente branca, diria. Na verdade, reparo agora que não me recordo o que te escrevi. Recosto-me para trás e entreabro os lábios enquanto me afogo na sombra que o candeiro projecta sobre o chão de madeira. Continuas a chover, murmuro baixinho numa voz muito rouca. Inclino o rosto para o chão num movimento lento acompanhado pelo torso também, como os pés, nu. Se o correio não se atrasar amanhã verei certamente o que te escrevi hoje. É que todas as cartas que ainda hoje te escrevo têm-me a mim próprio por destinatário.


sábado, novembro 19, 2005


O que afinal me lê são todos os livros que por dentro me perfazem enquanto me esqueço de quem sou numa infância que se perde na força da minha barba. Lembro-me de não haver eu quando o sol bocejava e subia todas as tardes sem mim sem palavras. Tenho aliás fotografias que provam que eu não existi nesse tempo junto à água, dentro das asas ou na minúcia dos sonhos. Porque me sento ao balcão de um café e às vezes também choro numa camisola azul e nua de tanto frio, penso que devagar se pode apagar o meu nome para de novo me perder. Acho que de repente posso até deixar de me ouvir respirar enquanto os meus olhos se desviam numa distância coroada de uns muros muito adormecidos para uma lonjura turva e sem tamanho. Ouve-se. Página a página. Mexendo devagar. as pálpebras. a clavícula que devagar cresce no rumor da carne e desta cama em particular. O livro? O que afinal me lê são todos os livros neste livro. que me perfaz enquanto me esqueço numa fotografia sem tempo. assim de repente. rasgando o brilho das páginas. para as letras dos meus dias. que se vão apagando lentamente num silêncio mulher, beijado até à chaga do meu coração fechado.

sexta-feira, novembro 11, 2005


A luz circula rítmica nas veias desta cidade até à minha cabeça coroada de insónias e trevas. Por dentro mim, mãe, há estes corredores interiores, atmosféricos numa ramagem branqueal de sopros, palavras e bebedeiras. Por dentro de mim, mãe, há o cardíaco esplendor deste naufrágio que de noite me acorda enrolado no meu cabelo de avencas azuladas. Eu sei que estou perdido. Eu sei que de nome em nome apenas trabalho o fogo, as mãos, a consciência das estações e dos dias. E de que no tempo nada me restará para viver. Eu sei que a luz circula rítmica e compacta nas minhas veias, na cidade que sou; que me passa unida pelos cotovelos para as pernas e que é funda, chamejante e abrasadora como a extenuante verdade da minha vida perdida nos corredores em que mergulho para dentro de mim, tão fundo como a força que me arrasta para fora. numa pessoa imóvel.

quinta-feira, novembro 10, 2005

domingo, novembro 06, 2005


Uma Viagem de Metro


- filme sonoro in magazine da TSF Rádio - 'O Som dos Pedais' - 20:21 a 28 de Agosto de 2003.


No fundo da água esbraceja a minha vida de olhos abertos para o frio. No trabalho da carne, dos ossos, das contínuas artérias pulsa-me o rosto unânime num abraço desordenado de uma dor estanque e gangrenada pela sombra fora. Eu não sei quem me agita no escuro dos braços abertos, nos olhos catedral que me morrem engolfados em espasmos de um cansaço sem termo. Eu não sei que soberba ou brilho se molda em torno do meu peito perante o dom deste naufrágio a que a água me obriga veloz numa teia de esquecimento. Eu não sei. E engolfado na nudez da roupa ponho o escuro nas minhas costas feitas de umas folhas muito finas e tácteis à superfície quieta da água e do amor.


Escavando diria. Como os meus dias se encostam ao tempo escavando as horas, assim eu esbracejo coronário na terra árdua. Outros dias levantam-me apressados e demorados no que em mim escrevem escavando rostos furiosos de uma dor em ferida. As horas escavam-me por dentro, mãe. E eu encosto a cabeça ao vidro no movimento sinistro de um terror que se queima pelo escuro esquecimento dos dias que me escavam repentinos, duros e fortes.

sábado, novembro 05, 2005


Eu chego a casa e ela dorme e sonha. Leva os dias no extremo labor das horas que ignoro e que na verdade pouco me importam por dentro. Sei que a minha vida me queima e que o rosto dormente e impassível que trago se perde desmoronado no vinho; sei-o quando chego a casa e te digo que no meio da névoa mais pura que na manhã nada há que me sustenha na penumbra das palavras surdas e lentas. Eu chego a casa e as minhas mãos são o pão e as rosas que como pela boca numa tristeza cansada e de um amarelo vindo das candeias que balouçam altas lá fora ao vento. Eu chego a casa e ela dorme; tudo na verdade dorme extremamente no sorriso lírio dos ossos mergulhados nos órgãos do sono queimando as imagens do dia. Eu chego e a minha casa está ali deitada em volta da rua num silêncio demorado e caído pela calçada fora enquanto ao mesmo tempo dorme e sonha.

terça-feira, novembro 01, 2005


Leve acontece a luz quando o tempo se curva nas varandas rodando lento e livre pela chuva dos meus dias. Se estou sentado no tempo e em casa, procuro pronunciar a meticulosa chuva dentro da minha cabeça imersa e imóvel em ti. Ou procuro uma voz que sorrindo pudesse dizer sobre como a infância se queima na candura clara das casas que se voltam lado a lado por entre as sombras se alguém inclina o teu nome nas paisagens. Ou numa voz. ou num clarão, dizia. Eu dizia que leve acontece a luz quando o tempo. Quando o tempo se pronuncia nas varandas pelos meus lábios e quando urbano o tempo se curva pelos ventrículos deste coração resplandecente de chuva.


Então eu poderia ter dito que nenhuma chuva me bastava do lado da noite e que absorvido na rapidez violenta da cidade, na distância ameaçadora do tempo, eu sou todas as curvas de aço que fluidas se engolfam na carne suturada do tráfego contorcido. Oh ausência, oh chuva que vertiginosa me ilumina a fronte, que este amor de me trazer ao colo num blusão rompido contra o céu inteiro em combustão me desole nos prédios debruçados na água um pouco abaixo da luz. tão tremendamente pura. tão tremenda que voa florida ao entardecer enquanto se precipita desordenada e coruscante no respirar bruto das janelas.