terça-feira, janeiro 31, 2006

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Por fim Yor afastou-se e Bastian ficou finalmente só, tornando-se quase nada junto àquela imensidão de um país vindo do frio onde até a neve caiu num domingo já remoto. Logo, de Bastian rompeu Aquiles e, sozinho, o Homem a chorar foi sentar-se longe da madrugada e de costas para um mar todo ele nevado numa Ulisseia perdida para o Inverno. no meio, no meio do frio o principezinho caminhava sonâmbulo no seu deserto e por entre os dias a luz cantava aquele longo gemido das coisas finitas. no vazio que crescia à beira de um escritório plantando a ocidente. e todas as coisas eram tão radicalmente finitas no centro desse vazio, mãe.

quinta-feira, janeiro 26, 2006


- Mas não fales, não faças barulho, ouviste? Aquilo que vais ver é o meu trabalho de muitos anos. O menor ruído pode destruí-lo.
Bastian acenou que sim, e saíram da cabana. Por trás desta havia uma grande torre de madeira e, por baixo, um poço,que conduzia verticalmente às profundezas da terra. Dirigiam-se para aí, atravessando a neve ao a manh'ser. Bastian viu então as imagens que estavam colocadas sobre a neve como se estivessem incrustadas em seda branca, quais jóias preciosas.
Eram placas muito finas de uma espécie de mica, transparente e colorida, de todas as formas e tamanho, quadradas e redondas, fragmentares ou de formas geométricas, algumas do tamanho de vitrais, outras pequenas como a miniatura da tampa de uma caixinha.
Essas imagens eram enigmáticas. Havia figuras que pareciam flutuar num grande ninho de pássaro, burros com togas de juízes, relógios que se fundiam como queijos cremosos, ou ainda bonecas articuladas em praças iluminadas onde não havia ninguém.
Quanto mais passeavam ao longo das imagens, menos Bastian compreendia o seu significado. Só percebia uma coisa: havia nelas tudo o que existia, se bem que por vezes numa estranha combinação.
Caiu o crepúsculo sobre a extensa planície nevada. Voltaram para a cabana. Depois de ter fechado a porta, Yor perguntou em voz baixa:
- Reconheceste alguma?
- Não - replicou Bastian.
O mineiro baloiçou pensativamente a cabeça.
- Porquê? - quis saber Bastian. - Que imagens são aquelas?
- São os sonhos esquecidos do mundo dos Homens - explicou Yor. - Depois de ter sido sonhado, um sonho não pode desaparecer. Mas quando o Homem que o sonhou o esquece, para onde vai? Vem para aqui. Fica enterrado nas profundezas da terra. Quanto mais fundo se cava, mais espessas são essas camadas. Toda a fantasia assenta sobre alicerces de sonhos esquecidos.
- Também lá estão os meus? - perguntei eu com os olhos abertos, sentado no frio vazio junto à janela. e entre o vidro e a rua, entre o frio desta dor anónima de eu ser os meus dedos roídos pelo frio do espesso esquecimento, apareceu o rosto do mineiro iluminado pelos reflexos da minha neve. Yor acenou afirmativamente.
- Claro. Claro que estão. Estamos todos.

Michael Ende, A História Interminável, cap. Y, mudado e adaptado.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

domingo, janeiro 22, 2006


Perguntam-me na rua as coisas que me são, o que poderia ser uma linguagem tão pura como a luz. uma linguagem silenciosa e sem espaços. uma linguagem, afinal, redonda e mulher. eu digo: dentro do plural dos nomes inventados as coisas bem poderiam ser a linguagem pura da minha cabeça lançada indefinidamente para a morte da minha vida. como cicatrizes ou chagas. caio então aqui. e nesta música eterna das coisas que me ressuscita indefinidamente e morre, eu faço o meu jantar e de repento páro. há qualquer coisa. há qualquer coisa, há qualquer coisa há qualquer coisa como ter uma alma e poder ouvir o que são as coisas dentro desta música mulher mar mão. mão na faca. caldo verde. e tudo me morre, e cego eu sou no meio destes ossos quentes o trabalho. as palavras. o poema assim despudorado. as coisas.

sábado, janeiro 21, 2006


Fora do jardim está o meu escritório com a minha vida caída e arrumada numa extensa mesa. Aí não crescem as altas árvores ou o viço dos frutos luzidios. Nem amadurecem as pêras, nem os cachos uns sobre os outros na violência esmagadora da candura natural e lenta do mundo. Fora do jardim tudo é aquele sotão morto por entre as ondas naquele instante em que morri por me ter deitado para a frente. tão escura e grande é a infância neste momento. e aqui, à entrada azul desta tarde que raia pelas vidraças deste escritório, eu levanto a cabeça hipnotizada como um objecto e sou uma solidão total, sou aquele afastamento afogado e ferido por entre os braços da minha morte rebentada nas ondas deste lugar tão vazio. eu penso isto tudo e, desculpem-me, desculpem-me mas eu não sei como pensar a minha vida se não nesta pureza das grandes noites do mundo, nesta magnífica e remota lembrança das roseiras, do nome extremo da minha mãe a florir folhas pequeníssimas por dentro dos sonhos. e tudo tão longe, tão absolutamente longe deste escritório.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

terça-feira, janeiro 17, 2006


Murmurem comigo. Eu posso ver. Eu posso ver, dizia. E por dentro dos papéis era sempre a mesma mulher. aquela mulher espalhada nos cinco dedos de cada mão. era aquela mulher nua. desdobrada na escuridão tão friamente deitada na pureza da noite. e eu vejo tudo isto do tamanho dos teus ombros, e não o posso cantar, e não o posso cantar no fervor feroz porque nenhuma imagem tua por dentro me esqueçe. e eu fico aqui. e recapitulando, dobro as folhas brancas. tão brancas no teu escuro, Bastian.

segunda-feira, janeiro 16, 2006


O silêncio era tão absoluto que o seu ouvido apurado ouvia os passos de um viandante rangendo na neve, lá muito longe ainda. [...] Tudo nele era cinzento como a pedra, o fato, a cara e o cabelo. Quando estava assim, de pé e imóvel, parecia esculpido num bloco de lava. Só os seus olhos cegos eram escuros, e tinham lá no fundo um brilho que parecia uma chamazinha.
Quando Bastian - pois era ele o viandante - se aproximou, disse:
- Bom dia. Perdi-me. Procuro a fonte donde brotam as Águas da Vida. Podes ajudar-me?
O mineiro escutava a voz que assim falava.
- Não te perdeste - murmurou ele. - Mas fala baixo, se não as minhas imagens quebrar-se-ão. [...] Depois o mineiro encostou-se para trás, na cadeira, e os seus olhos pareciam olhar para muito longe através de Bastian; perguntou num murmúrio:
- Quem és?
- Chamo-me Bastian Balasar Bux.
- Ah, então ainda sabes o teu nome.
- Sim. E quem és tu?
- Sou Yor, a quem chamam o Mineiro Cego. Mas só sou cego quando há luz. Na minha mina, onde reina a escuridão total, posso ver.

Michael Ende, A História Interminável, trad. de M. do Carmo Cary, Cap. Y.

quinta-feira, janeiro 12, 2006


Quando me deito para trás na minha cama sonho que o a manh'ser traz em si todos os viajantes e com eles toda a História do mundo. recapitulada através de mim. nesta chuva tão humana de me encontrar só no meio de pequenos papelinhos sem sentido. De Ulisses a Holgersson toda a realidade se dobra em espiral para um fundamento livre no único e verdadeiro caminho. aquele que é finalmente sem caminhante. bem sei que tudo isto é sonho e que por isso inevitavelmente me será fatal. a poesia. o silêncio. neste ardor. nesta cidade tão alta que até as gruas atormenta. No destino do Ser tudo isto está inscrito e escreve-se através do tempo que se desenrola no suor da vida e em cada imagem na breve distância dos seres que anoitecem para a ternura da minha morte. naufragada no terror.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

domingo, janeiro 08, 2006


Eu lembro-me muito bem quando eras tão pequenino que cabias em sonhos dentro das minhas mãos. Bem sei que me viste naquele dia. eu era todo um insensato arrepio na cor da resina da tua madeira tão viva como os olhos de uma criança. lembro-me de dormires nos meus braços enrolado como uma alma tranquila e abandonado a uma ternura eterna. E tudo isto fazia-me sentir tão humano. tão humano de te ter aqui. de estares lançado nos meus braços, como um irmão de uma impossível ressurreição. de seres uma carne que cantava uma extensa atenção pelas nossas veias numa finitude de mãos fechadas. eu lembro-me de tu seres a forma descida de uma glória que caiu. aqui. nos meus braços. nos meus braços, hoje, tão cheios dos latidos que começam em ti. e acabam em mim. eu lembro-me. do suor de te querer para sempre por entre os soluços que naquela manhã batiam nas janelas do meu quarto crepuscular. lembro-me nas imagens. golpeado por um vento muito frágil. lembro-me, sussurro. e de dia eu era um tremor recolhido numa felicidade que se beijava pelo teu pêlo de encanto no som do meu louvor por ti. e de noite, escoados todos os meus dias até ti, de noite, eu penso que eras talvez tu que me imaginavas por dentro. encurvando o ar por uma paixão espantosa.

quinta-feira, janeiro 05, 2006


Como dedos. deitados, vermelhamente amalgamados e juntos. eles brilham um sangue de tanto frio numa solidão tão pura como o som de um sorriso ao longe. Sabes, assim passa o meu inverno, tão alto e alvo como estes dias batidos e quase inapercebidos. o ano passou e balouçando ao vento do silêncio recolhido estamos aqui.gomo a gomo. grão a grão. gesto a gesto.

domingo, janeiro 01, 2006


E afinal os anos passavam mesmo, pai. As pessoas saíam de nossa casa e no tabuleiro, tal como na vida, ficava apenas o sal. deitado. imóvel no silêncio negro da vida. era quase de repente, depressa e ao mesmo tempo tão lento que tudo ainda resiste junto a estas horas frias e verticais. eu sinto isto tudo e não o sei dizer.como nascia aqui o ano. como se tocava em ti a terra derrubado mais um ano. mais um ano. e tudo ainda resiste em mim com a força de uma ternura desolada. mais um ano, pai. hoje fez mais um ano.


Eram os anos que passavam. passavam por entre as grades da minha alma. e eram apenas dias como grandes animais deitados ao acaso. dentro de mim e anoitecido à sombra das cidades no rancor do tempo. do rosto frente ao espelho. dos dias de trabalho. das manhãs em que saía de casa e era ainda noite. e nas gaiolas que apodreciam ao vento nenhuma ave tinha nascido ainda do sono.