segunda-feira, junho 25, 2007



Posso ir na corrente desta grande cidade, diluído no cimento e no silêncio da multidão, mas por dentro trago em mim os meus lugares de paz como uma flor invisível. Falo para mim mesmo no caminho para casa. Digo esta imagem quase oculta e táctil na luz deste fim de tarde. Pouco me importa sequer se existo: que diferença faria numa imagem uma espécie de felicidade acrescentada? Desço as alamedas e entretanto alguém me empurra como uma mancha indecente. Posso ir nesta corrente de gente sem fundo e sem motivo mas magoa-me qualquer coisa aqui. Sempre que me magoaram ao longo da vida nunca senti, por exemplo, que alguma pessoa o tivesse feito contra mim. Reparei talvez tarde e com um misto de espanto e de tristeza que muitas pessoas remetiam sempre para um outro a causa da sua dor: as pessoas são pontos de unidade a partir das quais emergem determinações que interferem connosco. Mas eu nunca tinha pensado assim. Vou na corrente desta grande cidade e não sei o que sou, misturado no cimento e silêncio da multidão. Pouco me importa. Desço a alameda. Trago em mim as imagens e ninguém me empurra. Pouco me importa se existo.

sábado, junho 23, 2007





Levanto-me muito cedo, mãe; tão cedo que raros são os dias do ano em que há luz nas ruas desta cidade. Detrás da obscuridade dos pesadelos e sonhos como flores imóveis que abandono de repente ficam as cortinas ainda fechadas do meu quarto. A casa está em silêncio. A minha vida nada pergunta porque dentro do meu corpo, a dor, antes mesmo de se tornar minha, é anterior ao pensamento e ao que me é próprio. Estou sozinho, tão só que não sei se quer que o estou; não penso em ser amado ou ser feliz e não tenho nenhuma recordação de coisa alguma. Estou descalço e sinto a luz eléctrica sobre as minhas mãos, os meus pés e as paredes amareladas desta divisão. Desconheço quase tudo e se há fendas nas paredes ante os meus olhos, dentro de mim estou numa solidão redonda e animal que se exprime talvez apenas por uma quietude que é qualquer coisa e ao mesmo tempo o seu desaparecimento, que é uma presença completa e em simultâneo o seu retirar-se para uma ausência inexplicável. Lembro-me de ter sentido isto, de ter sentido isto com todos os meus pensamentos dentro da minha cabeça: talvez esta serenidade violenta, esta agonia do cansaço que sinto todas as madrugadas seja a única forma palpável de uma sabedoria transparente e verdadeira. A dor podia ser anterior ao existir, pensei. Estudei alguns anos esta relação que pressenti existir entre a dor, o saber e o existir. Lembro-me de que nenhum grande sistema filosófico alguma vez tinha colocado a dor como um princípio extemporâneo ao que se doa à presença. O existencialismo humanista de Sartre, recapitulando aliás Hegel, não podia introduzir a dor fora de um sujeito incriado, mas coloca-a justamente na sua génese. A dor, neste caso, é o que obriga ao estilhaçar sangrento e momentâneo da consciência absoluta - mas porque não pode ser a dor anterior ao evento-ilusão da transcendência da consciência reflectida e do conhecimento de si? Se a temática da dor faz parte apenas das várias egologias que se estendem pela história do pensamento, talvez fosse possível pensar um sistema longe quer dos deuses à maneira das teologias mais orientais, quer das metafísicas ocidentais e do seu hábito de colocar a dor como um princípio matriz e pontual do eu e das suas várias figuras. A dor poderia ser anterior ao existir: não numa cronologia linear do tempo conforme o trâmite habitual da consciência, mas talvez a dor e a sua ignorante luminosidade pudesse ser a espontaneidade monstruosa constitutiva do centro de todos os existentes, o eterno subjacente, a única condição de possibilidade de todo o existir, da permanência dos entes, e, evidentemente, de toda e qualquer pessoalidade. Acreditei durante algum tempo que eventualmente valeria a pena estudar neste sentido. Levanto-me tão cedo, mãe. Frágil, o meu corpo ergue-se pela madrugada dentro e eu sei que estou inserido na confusão dos dias e da estreita narrativa que gravita de uma forma ou de outra à minha volta. As pessoas aparecem ou desaparecem, a própria calçada desdobra-se nos meus passos pelas ruas adiante e eu sei que estou sozinho porque esta é uma narrativa da qual eu sou o único narrador. Um beijo em ti, mãe, é um beijo na imagem que tenho de ti dentro de mim: e nunca foi de outra forma.

sexta-feira, junho 08, 2007



Era um Domingo de Inverno e tu levavas-me pela mão nas ruas daquela cidade. Havia pátios imóveis. Praias que pensavam sozinhas as suas próprias ondas. Ao final da tarde só havia eu e tu. Era Domingo. Tu levavas-me pela mão e os miúdos estavam já quase todos em casa. Era sábado. Havia lugares puros, lugares debaixo da luz, lugares como pétalas feridas pelo chão. Era Domingo e estava frio: os pássaros tornavam-se lentamente a quietude do fim de tarde e eu estava sozinho em ti através das ruas. Lembro-me de pensar que o meu sótão começava também a construir-se ali: sozinho nas tuas mãos, nas ruas quase desertas ou simplesmente dentro do meu pensamento pelos sábados largos e sem razão. Era Domingo e penso que foi naquele fim de tarde, no rosto da única menina que então se movia no pátio deitado sobre o frio que comecei a tornar-me sozinho. Era Domingo e eu ainda não sabia mas sem querer começava a tornar-me o meu sótão.