Depois daquele dia, mãe, caminhei sozinho pelas ruas. Pensei durante muito tempo que era importante dizer alguma coisa. a alguém. Pensei que era urgente. chegar ao pé de ti. ao pé de todos nós e dizer qualquer coisa. qualquer coisa de último e único como uma redenção branca e magnífica. Levantei-me cedo todos estes dias, mãe. No caminho para o trabalho, parado no trânsito, desliguei muitas vezes o rádio só para ouvir o nascer do sol. Pensei na intimidade radical do som dos piscas no interior do habitáculo de um carro através da estrada. Nas pessoas. Na radicalidade de haver esta carne que faz de mim quem sou, nesta finitude de vida que me constrói como um ser animado e capaz de uma reflexão, capaz de um debruçar-se sobre si mesmo no tempo. Semáforo após semáforo. Dentro de um café vagabundo a tomar o pequeno almoço. Pelas ruas. É tudo tão radicalmente só, mãe. Tudo está aqui. Deitado sobre uma espécie de mundo que não é possível destrinçar de nada porque logo à partida nada existe separado de nada. A solidão é a única coisa que é. Cada objecto é, nem sequer porque se contrapõe a um outro mas porque se fundamenta no nada. Cada coisa só é o que é porque o seu único fundamento é a solidão. Vou de mão nos bolsos e como todos os dias vejo muitas coisas deitadas no chão. Belo é este movimento; o de estar deitado sobre o chão, penso, o de simplesmente ser e estar ali na disponibilidade habitual das coisas. Sinto com os dedos as costuras dos bolsos no interior das calças. É cedo e não está ainda calor mas as minhas mãos e os meus dedos já transpiram. Penso que a esta hora os meus pais estão ainda deitados naquela espécie de certeza do sono quase inconsciente. E eu vou aqui no meio da rua. Aliás, são sete da manhã, mãe, e eu penso como é absoluto o gesto da pessoa que ainda agora abriu a janela do quarto pelo prédio que passei. Como é irredutível, irrepetível um gesto, um dia, um momento. Posso baixar o olhar até que aos soluços ele caia quebrado sobre o chão. Posso sentir tudo isto de uma forma quase desordenada, numa histeria silenciosa e perfeita de uma ternura sem fim. Posso tudo isto. Sinto-o na costura dos bolsos junto aos dedos. Nos carrinhos de compras deitados sobre o chão. No rosto do homem que passou ainda agora por mim.
sábado, setembro 30, 2006
Depois daquele dia, mãe, caminhei sozinho pelas ruas. Pensei durante muito tempo que era importante dizer alguma coisa. a alguém. Pensei que era urgente. chegar ao pé de ti. ao pé de todos nós e dizer qualquer coisa. qualquer coisa de último e único como uma redenção branca e magnífica. Levantei-me cedo todos estes dias, mãe. No caminho para o trabalho, parado no trânsito, desliguei muitas vezes o rádio só para ouvir o nascer do sol. Pensei na intimidade radical do som dos piscas no interior do habitáculo de um carro através da estrada. Nas pessoas. Na radicalidade de haver esta carne que faz de mim quem sou, nesta finitude de vida que me constrói como um ser animado e capaz de uma reflexão, capaz de um debruçar-se sobre si mesmo no tempo. Semáforo após semáforo. Dentro de um café vagabundo a tomar o pequeno almoço. Pelas ruas. É tudo tão radicalmente só, mãe. Tudo está aqui. Deitado sobre uma espécie de mundo que não é possível destrinçar de nada porque logo à partida nada existe separado de nada. A solidão é a única coisa que é. Cada objecto é, nem sequer porque se contrapõe a um outro mas porque se fundamenta no nada. Cada coisa só é o que é porque o seu único fundamento é a solidão. Vou de mão nos bolsos e como todos os dias vejo muitas coisas deitadas no chão. Belo é este movimento; o de estar deitado sobre o chão, penso, o de simplesmente ser e estar ali na disponibilidade habitual das coisas. Sinto com os dedos as costuras dos bolsos no interior das calças. É cedo e não está ainda calor mas as minhas mãos e os meus dedos já transpiram. Penso que a esta hora os meus pais estão ainda deitados naquela espécie de certeza do sono quase inconsciente. E eu vou aqui no meio da rua. Aliás, são sete da manhã, mãe, e eu penso como é absoluto o gesto da pessoa que ainda agora abriu a janela do quarto pelo prédio que passei. Como é irredutível, irrepetível um gesto, um dia, um momento. Posso baixar o olhar até que aos soluços ele caia quebrado sobre o chão. Posso sentir tudo isto de uma forma quase desordenada, numa histeria silenciosa e perfeita de uma ternura sem fim. Posso tudo isto. Sinto-o na costura dos bolsos junto aos dedos. Nos carrinhos de compras deitados sobre o chão. No rosto do homem que passou ainda agora por mim.
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