terça-feira, setembro 19, 2006


Jantaram numa toalha de linho no silêncio das pedras de granito e o rei ofereceu tudo o que de melhor tinha. Enquanto o rei contava os seus grandiosos feitos, a criança, mais que o resto dos convidados, ouvia-o atentamente. Lia-lhe as expressões, os gestos, o rosto e os olhos. Grande era a noite lá fora, pensou. E durante o silêncio apenas perturbado pelo último vinho que nessa noite o rei bebia o a criança de olhos rasos em água via-o atentamente; o grande rei parecia cansado, cansado das lutas, cansado dos outros, e cansado de si mesmo. Seguiu-se um momento em que os dois cruzaram o olhar. Noutra espécie de mundo, numa outra espécie de realidade, Yor esfregou as mãos e fechou ligeiramente os olhos. No velho castelo o rei interrompeu então o silêncio com uma voz e uns olhos carregados de vinho: que hei-de fazer na minha velhice? quem me segurará, a mim, a mim mesmo que tudo tenho e na verdade por tudo isso sou possuído? Se só eu me segurei até hoje, se tantas vezes por cima dos ombros dos mais fracos assentei os meus pés para subir mais alto, onde me segurarei quando chegar ao cimo da minha idade? Os olhos do principezinho abriram-se e o céu tornou-se de novo azul. Também os reis sofrem no desamparo que é viver, disse para si mesmo concluindo; estamos tão sós, estamos sempre tão sós; qualquer um de nós é sempre exterior ao outro, e dentro de nós mesmos existem múltiplos possíveis, tantos outros quantas as vezes uma parte de nós se debruçar sobre outra. Cada parte de nós está numa espécie de eternidade sozinha e os outros, este rei, as pedras que constituem estas paredes, cada um dos entes lançados na possibilidade actualizada e eminente de ser, tem a mesma relação que os outros de mim mesmo têm com as partes agentes que me perfazem. Uma pedra é uma pedra porque de alguma forma me aparece. Eu, eu mesmo sou eu próprio porque numa espécie de fluxo no meu tempo interior apareço para mim mesmo unificado, uno para uma instância agente irreflectida e fechada sobre si mesma numa solidão ainda maior do que a das coisas. No centro de mim mesmo há uma interioridade absoluta, uma totalidade individual e inteiramente isolada no deserto de ela própria ser todo o teatro da vida, todos os actores e em simultâneo todo o público possível.