sábado, setembro 30, 2006


Depois daquele dia, mãe, caminhei sozinho pelas ruas. Pensei durante muito tempo que era importante dizer alguma coisa. a alguém. Pensei que era urgente. chegar ao pé de ti. ao pé de todos nós e dizer qualquer coisa. qualquer coisa de último e único como uma redenção branca e magnífica. Levantei-me cedo todos estes dias, mãe. No caminho para o trabalho, parado no trânsito, desliguei muitas vezes o rádio só para ouvir o nascer do sol. Pensei na intimidade radical do som dos piscas no interior do habitáculo de um carro através da estrada. Nas pessoas. Na radicalidade de haver esta carne que faz de mim quem sou, nesta finitude de vida que me constrói como um ser animado e capaz de uma reflexão, capaz de um debruçar-se sobre si mesmo no tempo. Semáforo após semáforo. Dentro de um café vagabundo a tomar o pequeno almoço. Pelas ruas. É tudo tão radicalmente só, mãe. Tudo está aqui. Deitado sobre uma espécie de mundo que não é possível destrinçar de nada porque logo à partida nada existe separado de nada. A solidão é a única coisa que é. Cada objecto é, nem sequer porque se contrapõe a um outro mas porque se fundamenta no nada. Cada coisa só é o que é porque o seu único fundamento é a solidão. Vou de mão nos bolsos e como todos os dias vejo muitas coisas deitadas no chão. Belo é este movimento; o de estar deitado sobre o chão, penso, o de simplesmente ser e estar ali na disponibilidade habitual das coisas. Sinto com os dedos as costuras dos bolsos no interior das calças. É cedo e não está ainda calor mas as minhas mãos e os meus dedos já transpiram. Penso que a esta hora os meus pais estão ainda deitados naquela espécie de certeza do sono quase inconsciente. E eu vou aqui no meio da rua. Aliás, são sete da manhã, mãe, e eu penso como é absoluto o gesto da pessoa que ainda agora abriu a janela do quarto pelo prédio que passei. Como é irredutível, irrepetível um gesto, um dia, um momento. Posso baixar o olhar até que aos soluços ele caia quebrado sobre o chão. Posso sentir tudo isto de uma forma quase desordenada, numa histeria silenciosa e perfeita de uma ternura sem fim. Posso tudo isto. Sinto-o na costura dos bolsos junto aos dedos. Nos carrinhos de compras deitados sobre o chão. No rosto do homem que passou ainda agora por mim.

terça-feira, setembro 19, 2006


Jantaram numa toalha de linho no silêncio das pedras de granito e o rei ofereceu tudo o que de melhor tinha. Enquanto o rei contava os seus grandiosos feitos, a criança, mais que o resto dos convidados, ouvia-o atentamente. Lia-lhe as expressões, os gestos, o rosto e os olhos. Grande era a noite lá fora, pensou. E durante o silêncio apenas perturbado pelo último vinho que nessa noite o rei bebia o a criança de olhos rasos em água via-o atentamente; o grande rei parecia cansado, cansado das lutas, cansado dos outros, e cansado de si mesmo. Seguiu-se um momento em que os dois cruzaram o olhar. Noutra espécie de mundo, numa outra espécie de realidade, Yor esfregou as mãos e fechou ligeiramente os olhos. No velho castelo o rei interrompeu então o silêncio com uma voz e uns olhos carregados de vinho: que hei-de fazer na minha velhice? quem me segurará, a mim, a mim mesmo que tudo tenho e na verdade por tudo isso sou possuído? Se só eu me segurei até hoje, se tantas vezes por cima dos ombros dos mais fracos assentei os meus pés para subir mais alto, onde me segurarei quando chegar ao cimo da minha idade? Os olhos do principezinho abriram-se e o céu tornou-se de novo azul. Também os reis sofrem no desamparo que é viver, disse para si mesmo concluindo; estamos tão sós, estamos sempre tão sós; qualquer um de nós é sempre exterior ao outro, e dentro de nós mesmos existem múltiplos possíveis, tantos outros quantas as vezes uma parte de nós se debruçar sobre outra. Cada parte de nós está numa espécie de eternidade sozinha e os outros, este rei, as pedras que constituem estas paredes, cada um dos entes lançados na possibilidade actualizada e eminente de ser, tem a mesma relação que os outros de mim mesmo têm com as partes agentes que me perfazem. Uma pedra é uma pedra porque de alguma forma me aparece. Eu, eu mesmo sou eu próprio porque numa espécie de fluxo no meu tempo interior apareço para mim mesmo unificado, uno para uma instância agente irreflectida e fechada sobre si mesma numa solidão ainda maior do que a das coisas. No centro de mim mesmo há uma interioridade absoluta, uma totalidade individual e inteiramente isolada no deserto de ela própria ser todo o teatro da vida, todos os actores e em simultâneo todo o público possível.


Variados eram os mundos por onde então aquele homem de olhos fechados viajava. Há tantos mundos como pessoas para os pensar. Havia pessoas encarceradas em si e pessoas acorrentadas ao mundo. Umas por amor outras por ódio ou esquecimento. Por carência inclinavam-se para um certo exterior de si mesmas. As tardes passavam. E a maior parte do tempo aquela criança com o bosque nos olhos deixava-se comover só por saber que afinal havia tantos mundos e tantos modos de viver. Tantas escolhas, pensou. E naquela tarde, passados muitos vales e justamente dentro da mais alta serra de Portugal, parou por detrás da casa de um rei que cansado de tantas conquistas começava, então, a sentir por dentro o peso dos anos.

sexta-feira, setembro 15, 2006

quinta-feira, setembro 14, 2006



estou deste lado do portão, com a mão esquerda ligeiramente levantada para o abrir. tenho as mãos muito pequenas outra vez. outra vez. as mãos pequenas no portão verde. naquele portão que um dia foi de um amarelo que florescia o silêncio e eu próprio o pintei de verde naquelas tardes que faziam quase doer os dias. entro em casa. hoje. ainda está sol. se fecho os olhos. por acaso. desatam-se as cicatrizes e adormeço nos bolsos das calças de uma criança. naquele tempo. lembro-me. aquele cão era do meu tamanho. e ladrava pela rua como novelos que se desenrolavam. desajeitados. pensei nisto. se fecho os olhos. oiço tudo. na tristeza debruada dos frutos por cima da mesa de minha mãe. do som cinza e devastado das mulheres deitadas sobre a luz. e depois eu sou o meu corpo que se debruça de torso branco. e posso sentar-me na cama. e de olhos fechados sulco imediatemente os lençóis desfeitos para trás e sou um corpo em seixo mudo embrulhado no frio murado daquele ladrar. tão longe, tão longe no céu redondo da transparência. se fecho os olhos. se fecho os olhos. vejo quando de manhã me levanto de sobressalto e ainda está sol. se fecho os olhos tenho os olhos fechados. e vejo aquele portão. o único portão. despenhado e luminoso. nas minhas mãos. que se mexem devagar. na eternidade.

segunda-feira, setembro 11, 2006

numa espécie de casa. aí deixava que as paredes lhe comessem a carne. e os ossos. ficava fechado num canto. com as asas a tiritar de frio. com os dedos sombrios. com a cabeça inclinada sobre o peito numa imagem que ignorava o sol. e a luz. nenhuma fotografia, nenhuma luz então o segurava. ficava apenas ali. com aquele brilho invulgar tocado imperceptivelmente pelos ombros. dentro. daquele brilho de um sol sentado na poeira. como um beijo acorrentado junto aos olhos. estava fechado. e fechado lutava em silêncio por estas palavras afogadas. por estas palavras agarradas ao círculo mudo do meu fechamento. numa imagem sem imagem. numa imagem que não regressa de lado nenhum. numa imagem que ambiciona apenas este aproximar-se. para te dizer. recusando. tudo. ardido a vermelho nos braços estendidos pelo chão. respirando. com aquela espécie de casa que se fechava como um coral. nas janelas todas leves. apagadas no linho da luz. apagadas. apagando as palavras como as grandes asas de um pássaro que pousa. no escuro. na ramagem nula do horizonte. cansado. porque ele esperava quase nada. porque dele esperava quase nada.

sábado, setembro 09, 2006

quinta-feira, setembro 07, 2006

quarta-feira, setembro 06, 2006


depois de surgido como um sonho dentro de um sonho, chego de pele esbranquiçada e cabelo arrumado ao clangor da manhã coada pelos grandes prédios. aqui há carrinhos soltos pela ruas. dobram-se ao vento, ao calor e à chuva como caules no fulgor do vão metal abandonado. passo por eles e imagino-os como se ali estivessem realmente. iluminados. como grandes pavões azuis no sossego das folhas junto ao passeio, junto às ervas que se erguem hábeis para o sol. passo por eles. todas as manhãs. como se fosse sempre de noite. no veludo negro da noite. e penso. que se espalham no vale escuro desta cidade. infiel nas imagens. com aquela melodia do chão que canta o cansaço tosco e preso do lado luminoso da penumbra. das casas. tão de manhã. na distância do chão que desce imóvel como um pano.

segunda-feira, setembro 04, 2006


estou à beira de fazer sete anos e tenho as minhas mãos agarradas às tuas. tenho as pernas nos teus ombros. dobradas sob o teu peito. estou aqui e saltamos juntos. nos sorrisos de uma inexplicável alegria e de um medo inescapável. o céu negro. o céu naquela música de tanta luz. estremecendo. livre através da memória do som. e as minhas mãozinhas que te agarram. ora nas mãos. mão sobre mão. ora nos ombros. e eu criança. com o olhar solto para o céu na idade maravilhosa dos lábios anteriores aos trapos das palavras. e as tuas pernas que se movem com a força de um vento de coração aos saltos. pai! pai! grito. e o céu enorme. aberto como uma coroa. ali. nas minhas mãos sobre as tuas. vermelhas. naquela noite tão ardente. sonho sobre sonho em nós. na minha cabeça voltada para a noite. nos teus ombros que me seguravam. nos meus olhos fechados por dentro do ritmo. no avante. no avante. as pessoas. o som. o grande som. das pessoas que dançam connosco. são mil pessoas. são mil pessoas nos meus olhos, pai. são mil pessoas na minha cabeça. no avante, pai. em ti. nos teus ombros. no meu cabelo que também dança. pois tudo ali dançava. à roda. à roda. no avante. estou à beira de fazer 7 anos. estou à beira de fazer sete anos e a minha idade dança. nas tuas mãos. na memória da folia. na memória dos meus olhos. são mil pessoas, pai! são mil pessoas?, rias no escuro iluminado. são muito mais, filho!, somos muitos mais, filho!

sábado, setembro 02, 2006


photo de photo, Festa do Avante, 2 de Setembro de 2006.