terça-feira, fevereiro 19, 2008



faz hoje um mês que parti. há um mês que parti. foi esta noite, outra noite, outra vez. a mesma noite. faz hoje um mês que parti. um ano. um dia. um momento. faz hoje um instante, um dia puro que parti. que me deixei ao fundo da rua. que deixei as palavras e os seixos da manhã na água amarela dos jarros das flores. hoje faz precisamente um momento. um dia que deixei de escrever na carne com um amor completo e aceso no meio das mãos. há um mês que parti. faz hoje um mês que este é o meu peito: um rio tejo de poucas palavras, um homem sentado no chão do quarto como se fosse o interior da terra ou como se fosse simplesmente puro, atravessando a correr o amor. morrer, reviver: encosto a cara ao cheiro dos barcos e devagar eu sou aquela água despenhada na noite. de uma carne branca. daquela mulher na solidão do amor. respirando. vês-me? ainda me vês? penso. há um mês que parti como se fosse o cantar das águas na espuma contra os barcos do tejo. que flores cegas são estas sobre as quilhas dos barcos que sou? rompem-se as estrelas junto à cara maciça no sofrimento desta viagem. descem os dedos. há um mês que parti, penso. oiço os meus sinos nas trevas. sou um texto sem poros. sem palavras. sou um barco alto na espuma cega. mergulhado nos filamentos do amor. do amor dentro, chamando aquela mulher ardente. aquela mulher que naquela noite fugia nua para o mar. como se atravessasse o mundo. com o amor ao meio. num ramo de flores amarelas. a mesma noite. hoje é a mesma noite. onde sou absolutamente aquele movimento celeste da espuma junto ao corpo desta mulher molhada pelo mar até às raízes da sua inocência. tão branca que só podia ser habitada pelo silêncio. faz hoje um mês que eu beijei cada onda sua através dos meus dedos apavorados pelas estrelas. faz este momento um instante que há uma mulher branca dentro de mim que caminha para o amor. para a mar. e a minha respiração são aquelas ondas que lhe ceifam o corpo. metidas pela terra dentro. o corpo que bate contra mim no ar onde dormem as estrelas, os campos deitados para o fogo do coração das coisas. faz agora um momento. um momento de ardor, de campos extraordinários e brancos lavrados para a candeia de um homem que partiu. que se deixou. que se desdobra, perfeito. na ponta dos nomes. na ponta dos pés sobre o meu corpo: nas palavras que se abrem delicadamente para mim. na pureza do mundo. daquela mulher que estremece quando de noite digo baixo o seu nome. o teu nome. sussurro. murmuro. morro e crio. recrio, respiro e contigo caço flores no tejo, desentranho o sono que há dentro das tuas mãos. e em cada momento eu sou o mês que partiu, o meu peito desocupado pelo azul. iluminado. quente. como se só houvesse o interior do teu corpo.