Lembro-me de naquele tempo não haver sequer vento, de não se agitar uma árvore lá fora e de haver um terraço apenas com roupa estendida e o cheiro do sabão espalhado nos tecidos. Lembro-me apenas de coisas mínimas. Do cheiro das laranjas que apodreciam no chão irisadas na luz que se entornava então sobre a terra. Lembro-me de naquele tempo sentir que cada palavra era uma distância. De sentir as coisas espalhadas no chão do meu quarto e de sofrer por só lentamente me poder aperceber de que tudo estava radicalmente só e dividido. Lembro-me, aliás, de naquele tempo ter dividido pela primeira vez as coisas do mundo: o chão e os frutos, as árvores e o céu, as ondas e o mar. Lembro-me de ter visto pela primeira vez o mundo representado nas asas de uma borboleta: cada asa é uma pessoa, murmurei, e cada borboleta é o pequeno prodígio de haver um mundo. Pensei que as asas de cada borboleta poderiam ser duas pessoas que ora se encontravam ora se perdiam para uma distância que na tensão da presença jamais poderia ser infinita. Pensei que o equílibrio de haver borboletas era justamente este ofício do encontro: no meio da borboleta estava o labirinto de haver um possível, de haver um animal sozinho na viagem das pessoas que o construíam para a sua morte. Não havia vento naquele tempo: as borboletas repousavam sem perturbações nos círculos de água da minha face. Lembro: cada asa tem o seu duplo como cada lábio tem o seu par, disse. Pela areia do sono descia ao fundo do meu coração e lembro-me, recordo-me muito bem de no interior do meu quarto ter construído uma margem de silêncio onde mais tarde entrancei o teu cabelo e casei o movimento dos teus pés descalços na areia das praias. De tudo isto fiz borboletas. Das ondas e do mar, do teu cabelo, dos teus olhos nos meus. Do teu corpo em ti própria. Cada borboleta regressa a si mesma como uma flor ao nascer da luz: fixando o sol, das asas nasce o animal e do animal nascem as casas, as palavras e o amor. Depois a borboleta faz uma escada para trás, para o seu deserto, para o fim do poema, para o fim de todos os poemas. Eu apago os passos: cada borboleta apaga então o que deixou pela areia: uma escama de luz, um pedaço de asa. E se chegou ao céu por voar, regressará a casa porque consegue pisar por amor o coração sem asas nem animal que lhe resta. Naquele tempo era tudo como me lembro hoje: a casa lá fora estava deitada sobre a luz, cá dentro não se agitavam as árvores e as palavras beijavam-se entre o silêncio. As coisas continuavam espalhadas pelo chão do meu quarto. E eu? Recomeçava, eu.
segunda-feira, março 24, 2008
Lembro-me de naquele tempo não haver sequer vento, de não se agitar uma árvore lá fora e de haver um terraço apenas com roupa estendida e o cheiro do sabão espalhado nos tecidos. Lembro-me apenas de coisas mínimas. Do cheiro das laranjas que apodreciam no chão irisadas na luz que se entornava então sobre a terra. Lembro-me de naquele tempo sentir que cada palavra era uma distância. De sentir as coisas espalhadas no chão do meu quarto e de sofrer por só lentamente me poder aperceber de que tudo estava radicalmente só e dividido. Lembro-me, aliás, de naquele tempo ter dividido pela primeira vez as coisas do mundo: o chão e os frutos, as árvores e o céu, as ondas e o mar. Lembro-me de ter visto pela primeira vez o mundo representado nas asas de uma borboleta: cada asa é uma pessoa, murmurei, e cada borboleta é o pequeno prodígio de haver um mundo. Pensei que as asas de cada borboleta poderiam ser duas pessoas que ora se encontravam ora se perdiam para uma distância que na tensão da presença jamais poderia ser infinita. Pensei que o equílibrio de haver borboletas era justamente este ofício do encontro: no meio da borboleta estava o labirinto de haver um possível, de haver um animal sozinho na viagem das pessoas que o construíam para a sua morte. Não havia vento naquele tempo: as borboletas repousavam sem perturbações nos círculos de água da minha face. Lembro: cada asa tem o seu duplo como cada lábio tem o seu par, disse. Pela areia do sono descia ao fundo do meu coração e lembro-me, recordo-me muito bem de no interior do meu quarto ter construído uma margem de silêncio onde mais tarde entrancei o teu cabelo e casei o movimento dos teus pés descalços na areia das praias. De tudo isto fiz borboletas. Das ondas e do mar, do teu cabelo, dos teus olhos nos meus. Do teu corpo em ti própria. Cada borboleta regressa a si mesma como uma flor ao nascer da luz: fixando o sol, das asas nasce o animal e do animal nascem as casas, as palavras e o amor. Depois a borboleta faz uma escada para trás, para o seu deserto, para o fim do poema, para o fim de todos os poemas. Eu apago os passos: cada borboleta apaga então o que deixou pela areia: uma escama de luz, um pedaço de asa. E se chegou ao céu por voar, regressará a casa porque consegue pisar por amor o coração sem asas nem animal que lhe resta. Naquele tempo era tudo como me lembro hoje: a casa lá fora estava deitada sobre a luz, cá dentro não se agitavam as árvores e as palavras beijavam-se entre o silêncio. As coisas continuavam espalhadas pelo chão do meu quarto. E eu? Recomeçava, eu.
<< Home