Fustigado pelo vento, o principezinho era levado em sonhos para lugares cada vez mais longínquos. Sozinho o quarto fechava as pálpebras em asas e a criança vinha de vez em quando à tona daquele escuro respirando aos soluços depois das grandes chuvas de Inverno ou entre as revoluções no céu e o nascer dos pássaros nos ramos leves. ao amanhecer batiam as horas na sala abandonada ao tempo e de olhos também fechados na noite, Yor, abanava a cabeça preocupado com o seu menino. largo era o vazio que se abria em chagas no coração do principezinho e por isso o mestre começava a temer pela vida do pequeno rapaz de caracóis. talvez nada lhe chegasse, pensava. talvez nada lhe baste, nenhuma humilhação lhe chegue, dizia, franzindo de dor e desgosto a fronte então mal iluminada. o que bastará a quem nada é suficiente? mas por dentro daquela criança, dentro do seu pequeno e alvo peito, aquela borboleta azul levava-o para longe trazendo-o para uma proximidade que balouçava na força da memória da história e no peso do calor das paisagens olhos dentro. o quarto estava vazio. o mestre sentado. e o principezinho morria. de torso virado para cima a criança jazia átona e silente na cegueira branca e rouca de uma ternura completa e absoluta. cada fronteira entre si o mundo era nele pensada até ao extremo numa lucidez que agora cintilava uma sensibilidade até então nunca vista por ninguém. de que seria feito o existir?, que ser, que estrutura nos permite ou possibilita o simples aparecer das coisas na forma da presença? e nisto volteavam-se os pensamentos do principezinho até à memória de dias que estavam para lá das imagens. para lá do haver outros ou qualquer outra forma de outridade. que estrutura torna possível este haver coisas e porque se tornou esta possibilidade uma actualidade? Com isto o principezinho sofria dentro de si, mas era justamente a lucidez deste sofrimento que o lançava para o questionar bruto do que agora percebia com uma clareza que até então nunca tinha sentido. do pequeno ao grande. de si a outro ser, o que lhe doía era pensar como tudo o que o circundava nada mais era senão um simples e único doloroso movimento estilhaçado em partes: pessoas que amavam e eram amadas, pessoas que se riam ou choravam, seres que se alimentavam ou morriam, corações, veias e esqueletos à chuva; tudo era o mesmo movimento, como uma dor universal num aberto de ausência e carência fundamental. tudo era exterior a tudo. cada objecto estava na exterioridade de um outro numa inorganicidade mortal e numa solidão inultrapassável. como seria possível este haver coisas?, como podia ser possível uma realidade tão contigente, tão radicalmente incondicionada e sem um ponto de sustentação que não fosse a própria solidão?, questionava em doença o principezinho. E nisto, de torso virado para cima, o vento que vinha do céu magoava cada vez mais a pele da criança que se apagava como um longo incêndio cansado de tanta raiva. dentro de si, no peito, trazia apenas aquela borboleta azul. como um único e último jardim. e só ela, dentro daquele jardim, dentro daquele quarto sozinho, só ela, agora o levava como um pensamento puro através da luz.
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