Levanto-me muito cedo, mãe; tão cedo que raros são os dias do ano em que há luz nas ruas desta cidade. Detrás da obscuridade dos pesadelos e sonhos como flores imóveis que abandono de repente ficam as cortinas ainda fechadas do meu quarto. A casa está em silêncio. A minha vida nada pergunta porque dentro do meu corpo, a dor, antes mesmo de se tornar minha, é anterior ao pensamento e ao que me é próprio. Estou sozinho, tão só que não sei se quer que o estou; não penso em ser amado ou ser feliz e não tenho nenhuma recordação de coisa alguma. Estou descalço e sinto a luz eléctrica sobre as minhas mãos, os meus pés e as paredes amareladas desta divisão. Desconheço quase tudo e se há fendas nas paredes ante os meus olhos, dentro de mim estou numa solidão redonda e animal que se exprime talvez apenas por uma quietude que é qualquer coisa e ao mesmo tempo o seu desaparecimento, que é uma presença completa e em simultâneo o seu retirar-se para uma ausência inexplicável. Lembro-me de ter sentido isto, de ter sentido isto com todos os meus pensamentos dentro da minha cabeça: talvez esta serenidade violenta, esta agonia do cansaço que sinto todas as madrugadas seja a única forma palpável de uma sabedoria transparente e verdadeira. A dor podia ser anterior ao existir, pensei. Estudei alguns anos esta relação que pressenti existir entre a dor, o saber e o existir. Lembro-me de que nenhum grande sistema filosófico alguma vez tinha colocado a dor como um princípio extemporâneo ao que se doa à presença. O existencialismo humanista de Sartre, recapitulando aliás Hegel, não podia introduzir a dor fora de um sujeito incriado, mas coloca-a justamente na sua génese. A dor, neste caso, é o que obriga ao estilhaçar sangrento e momentâneo da consciência absoluta - mas porque não pode ser a dor anterior ao evento-ilusão da transcendência da consciência reflectida e do conhecimento de si? Se a temática da dor faz parte apenas das várias egologias que se estendem pela história do pensamento, talvez fosse possível pensar um sistema longe quer dos deuses à maneira das teologias mais orientais, quer das metafísicas ocidentais e do seu hábito de colocar a dor como um princípio matriz e pontual do eu e das suas várias figuras. A dor poderia ser anterior ao existir: não numa cronologia linear do tempo conforme o trâmite habitual da consciência, mas talvez a dor e a sua ignorante luminosidade pudesse ser a espontaneidade monstruosa constitutiva do centro de todos os existentes, o eterno subjacente, a única condição de possibilidade de todo o existir, da permanência dos entes, e, evidentemente, de toda e qualquer pessoalidade. Acreditei durante algum tempo que eventualmente valeria a pena estudar neste sentido. Levanto-me tão cedo, mãe. Frágil, o meu corpo ergue-se pela madrugada dentro e eu sei que estou inserido na confusão dos dias e da estreita narrativa que gravita de uma forma ou de outra à minha volta. As pessoas aparecem ou desaparecem, a própria calçada desdobra-se nos meus passos pelas ruas adiante e eu sei que estou sozinho porque esta é uma narrativa da qual eu sou o único narrador. Um beijo em ti, mãe, é um beijo na imagem que tenho de ti dentro de mim: e nunca foi de outra forma.
sábado, junho 23, 2007
Levanto-me muito cedo, mãe; tão cedo que raros são os dias do ano em que há luz nas ruas desta cidade. Detrás da obscuridade dos pesadelos e sonhos como flores imóveis que abandono de repente ficam as cortinas ainda fechadas do meu quarto. A casa está em silêncio. A minha vida nada pergunta porque dentro do meu corpo, a dor, antes mesmo de se tornar minha, é anterior ao pensamento e ao que me é próprio. Estou sozinho, tão só que não sei se quer que o estou; não penso em ser amado ou ser feliz e não tenho nenhuma recordação de coisa alguma. Estou descalço e sinto a luz eléctrica sobre as minhas mãos, os meus pés e as paredes amareladas desta divisão. Desconheço quase tudo e se há fendas nas paredes ante os meus olhos, dentro de mim estou numa solidão redonda e animal que se exprime talvez apenas por uma quietude que é qualquer coisa e ao mesmo tempo o seu desaparecimento, que é uma presença completa e em simultâneo o seu retirar-se para uma ausência inexplicável. Lembro-me de ter sentido isto, de ter sentido isto com todos os meus pensamentos dentro da minha cabeça: talvez esta serenidade violenta, esta agonia do cansaço que sinto todas as madrugadas seja a única forma palpável de uma sabedoria transparente e verdadeira. A dor podia ser anterior ao existir, pensei. Estudei alguns anos esta relação que pressenti existir entre a dor, o saber e o existir. Lembro-me de que nenhum grande sistema filosófico alguma vez tinha colocado a dor como um princípio extemporâneo ao que se doa à presença. O existencialismo humanista de Sartre, recapitulando aliás Hegel, não podia introduzir a dor fora de um sujeito incriado, mas coloca-a justamente na sua génese. A dor, neste caso, é o que obriga ao estilhaçar sangrento e momentâneo da consciência absoluta - mas porque não pode ser a dor anterior ao evento-ilusão da transcendência da consciência reflectida e do conhecimento de si? Se a temática da dor faz parte apenas das várias egologias que se estendem pela história do pensamento, talvez fosse possível pensar um sistema longe quer dos deuses à maneira das teologias mais orientais, quer das metafísicas ocidentais e do seu hábito de colocar a dor como um princípio matriz e pontual do eu e das suas várias figuras. A dor poderia ser anterior ao existir: não numa cronologia linear do tempo conforme o trâmite habitual da consciência, mas talvez a dor e a sua ignorante luminosidade pudesse ser a espontaneidade monstruosa constitutiva do centro de todos os existentes, o eterno subjacente, a única condição de possibilidade de todo o existir, da permanência dos entes, e, evidentemente, de toda e qualquer pessoalidade. Acreditei durante algum tempo que eventualmente valeria a pena estudar neste sentido. Levanto-me tão cedo, mãe. Frágil, o meu corpo ergue-se pela madrugada dentro e eu sei que estou inserido na confusão dos dias e da estreita narrativa que gravita de uma forma ou de outra à minha volta. As pessoas aparecem ou desaparecem, a própria calçada desdobra-se nos meus passos pelas ruas adiante e eu sei que estou sozinho porque esta é uma narrativa da qual eu sou o único narrador. Um beijo em ti, mãe, é um beijo na imagem que tenho de ti dentro de mim: e nunca foi de outra forma.
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